Poética Quebrada
Para Marcelino Freire,
Nunca
disse pra ninguém! Foi quando o perfume de formol se misturou com o
cheiro da coroa de flores, que a poesia perdeu todo o sentido por
aqui, mãe.
A única coisa, ficou lá dentro, ressentida, mórbida, só, que sai
de mim espremida em linhas de varizes prestes a explodir é a dor.
Nunca, não explode, ela incha, prosa inflamada vira literatura de
sangue pisado, sabe? Com personagens doentes por conta da tarefa de
disfarçar cotidianamente o fedor de decomposição, eu, a céu aberto.
*
Será
que se fosse diferente, uma prosa com mais concordância, estilo e
classe, menos repetição, inversões desnecessárias, viela, esgoto.
Se o assunto fosse outro, viagens, os
mares,
noites,
montanhas, uma estranha relação entre o outono, as folhas que caem,
a
poesia,
os olhos claros dela… Será, se fosse assim, então, que aquela
ambulância teria chegado a tempo? Na Piraporinha, no Chácara, no
Jardim Marília, heim? Será que se eu colocasse a crase no lugar
certo, isso traria o remédio que falta no posto Zumbi dos Palmares? Inútil, o verso mais
lírico
não esconde meu sonho mais grande: não morrer no corredor do
Hospital Campo Limpo…
*
Por
volta das 22hs, chegou mais um dos nossos, de 16 anos perfurados, ao
seu lado na sala, algodão no nariz, cemitério São Luiz, duas balas alojadas – tórax
e pulmão. Crocodilagem! Acredita? Judaria, mano, ele morava na 2,
não tinha nada a ver com o bagulho. Cagada!
Caguetaram o moleque sem dó roubando no lugar errado para samango
desceu a ladeira tudo apagado pistolas caiu em cima morreu o menino
como cachorro. Lembra? Estampido, coisa que cai, canto de pneu,
cheiro de pólvora, João Dias, medo atrasado, sede, o instante exato
em que as suas pupilas dilataram. Mãe, a vida não tinha mais jeito. Não dá pra acreditar, mano, escuto os tiros sem parar na minha cabeça,
você, ali, rosto sem expressão de paz, flor pisada; derramado, eu
grito para dentro
o verso de protesto que garrote estanca e criminaliza as poucas
estrofes do amor inexistente entre todos nós.
*
Era
vazio a noite, enquanto a
xícara de café distribuía
o atestado de óbito para justificar a falta no trabalho, o
gosto de misto-quente, de
mão em mão, passava o silêncio interrompido apenas pela pá
na terra, pela terra nas costas, pela respiração do futuro poeta se soterrando dentro de si.